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Máquinas, vapor e heróis.
24/03/2015 14:42 em Crônicas

Há alguns dias, estive lendo A máquina diferencial, de Gibson e Sterling. Trata-se de uma história segundo os moldes da ficção científica, pressupondo que, lá nos idos do século XIX, Charles Babbage aperfeiçoou a máquina diferencial e a “era da computação” começa, então, em 1820 ou 30, em um mundo movido pelo vapor e iluminado pelos lampiões a gás. O resgate do espírito de época com seus lordes, vigaristas, charlatães, miseráveis, cartolas e bengalas... enfim, da velha Era Vitoriana, é primoroso, ao ponto do leitor sair falando coisas como “Deus o abençoe, meu bom homem” ao invés do cotidiano “obrigado”. 

Nessa óptica, o século de XIX parece um período bastante interessante, diga-se de passagem. Havia um espírito de época que se apegava ao materialismo, ao evolucionismo darwiniano, um tipo de império das liberdades, felicidades e riquezas (inglesas, of couse), como fala o Mircea Eliade, no seu livro “Origens”. Claro, cogitamos aqui na Europa e nas classes nobres e ricas, e não nos pobres e na classe média, que, convenhamos, não deveriam ser tão otimistas quantos a elite de 1840. Nem um pouco, na verdade, já que os salários eram pífios e as jornadas de trabalho eram absurdas, beirando as 16 e, em alguns casos, quase 20 horas diárias. Alguns empresários da nossa região certamente lembram dessa época e suspiram, saudosos de tais tempos dourados.Naquela época, pessoas com “boa índole” eram exploradas sem dó ou piedade e as de “má índole” usavam subterfúgios, tornando-se vigaristas, falsários, “tratantes”, facínoras e todas aquelas adoráveis ocupações que envolviam o logro alheio. Não que todos fossem vilões, ou congêneres, mas, pensando sob uma prerrogativa sócio-histórica, eram indivíduos em um contexto específico e, desse modo, reagindo sob as implicações do mesmo. A vilania, tanto a do “populacho” quanto a dos lordes, nas cidades europeias do século XVIII e XIX ainda rende bons estudos aos curiosos...

Algumas vezes, quando penso sobre o grau de exploração daqueles tempos, me pergunto o que faltou para cativar a massa de trabalhadores insatisfeitos e promover a queda da câmara dos lordes, a derrocada dos opressores, o troco da vil infâmia ou algum desses famigerados slogans. Parece-me que enxergo a cena: manifestantes de capa, cartola e bengala usando cartazes, como aqueles terríveis “homens sanduíches”, com os dizeres “Temperança para as jornadas laborativas!” ou “Parcimônia e liberalidade para o chá das cinco!” “Pelo fim da concupiscência dos Lordes!”. Fatalmente, os policiais chegariam e, enrolando o bigode com os dedos enluvados, dariam voz de prisão aos desditosos: “Por Deus, meu bom homem, sabeis que estás perturbando a ordem pública com tuas infâmias?” ou, cinicamente, enquanto os homens sanduíches tentassem correr com seus ingratos dizeres, os defensores da lei os perseguiriam, esbravejando: “Pare em nome de sua majestade, tratante!” “Renda-se, biltre!” Bom, em resumo, a manifestação terminaria mais ou menos como hoje: “alguns muitos” precisando falar, “uns poucos” querendo não-ouvir e as forças policiais protegendo o patrimônio. Apesar do habitual cinismo textual, confesso que as questões das lutas socais são bastante interessantes. O próprio Superman, em suas primeiras histórias, lá em 1940, era uma tipo de “campeão do povo”, enfrentando os gangsters e magnatas que exploravam os pobres e a classe média na lendária revista “Action Comics”. Um resquício desse passado ainda é visto na questão do Lex Luthor, que mesmo não tendo superpoderes, é um adversário digno do azulão. Luthor é o cara mais assustador dentre a galeria de vilões do personagem, porque justamente é o mais real de todos. Pense um pouco, meu caro leitor, e duvido que você não dê nome aos bois: toda cidade tem seu Lex Luthor, aquele sujeito mais rico que Deus, sem ética ou de moral duvidosa que mexe as cordas dos poderes executivo, legislativo e judiciário. 

De que adianta a superforça do Superman quando o martelo do juiz bate? Ou então a velocidade do Flash quando a maioria do legislativo se posiciona de modo favorável a uma lei que, claramente, beneficia interesses econômicos privados? É, pois é... 

Talvez, e apenas talvez, o espírito do século XIX não esteja tão distante quanto imaginamos. E talvez, e apenas talvez, possamos diminuir sua marcha por meio do superpoder mais tolhido e manipulado pelos meios midiáticos: o senso crítico. Ele não chega a ser o sentido de aranha, do Homem-Aranha, ou o sentido cósmico, do Capitão Marvel ou mesmo o sentido de radar do Demolidor, mas, com certeza, salva os “heróis cotidianos” de algumas graves desventuras, meu bom homem! E, se ele falhar, ouçamos “Black Betty”, do Ram Jam: “bambalam, bambalam, bambalam!” 

 

 

 

 

 

 

 

 

Dangelo Müller 

Ms. Letras e Cultura Regional

 

 

 

 

 

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