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A fórmula do herói ? parte 1: A jornada mítica
13/05/2013 21:56 em Crônicas

 

Há um livro de Joseph Campbell assaz interessante, O herói de mil faces, cuja versão original em inglês deve ser de 1949 ou 1950. Nos primeiros capítulos, em especial, o livro apresenta o tema da “jornada do herói”, ou seja, o caminho que um herói das mais diversas mitologias e lendas percorria para obter o status heroico propriamente dito. Campbell exemplifica a teoria com Ulisses, Teseu, Édipo, Hamlet e até Buda, argumentando, entre outras coisas, que a jornada é um processo de construção e identificação do Eu. Ideia tentadora, não é mesmo?

Vamos tentar aplicar a teoria do Sr. Campbell “em 10 passos”. Inicialmente, precisaremos de um herói... Imaginemos o nosso velho Odisseu, o Ulisses dos romanos: ele é chamado para a Guerra de Troia (1. O chamado para a aventura), mas não pode simplesmente aceitar, afinal, ele é o maldito rei de Ítaca e Penélope é uma rainha que atrai muitos olhares...(2. A recusa ao chamado). O problema é que a deusa Athena também “mete uma pressão” e, bom, vamos lá, então... (3. A presença sobrenatural e 4. A passagem pelo limiar). Ulisses permanece lutando por anos ao lado da nata dos heróis gregos (Aquiles, Ajax, Diomedes, Menelau...), enfrentado os terríveis troianos, povo deveras tinhoso que tinha a audácia de defender seu reino, família e lar dos pobres invasores... Onde já se viu isso?! A testa ornada com o complemento bovino de Agamêmnon merecia ser vingada de forma impreterível! Bom, esse período em Troia configura um tempo de repouso/reflexão, em que o herói revê seu papel no mundo e tal, se reconfigurando (5. Dentro do ventre da baleia)... Com o fim da guerra e destruição do inimigo, Ulisses é liberado e pode voltar para seu próprio reino, porém, e sempre tem um porém catastrófico em assuntos mitológicos, ele precisa superar as adversidades que a inimizade com Poseidon lhe acarreta (6. O caminho das provações). São muitas dificuldades e diversas tentações como Calipso, (a ninfa do mar e não a banda – essa nunca há de tentar ninguém...), a feiticeira Circe e a jovem Nausicaa (7. A mulher como tentação). Ora, ora, claro que Ulisses supera tudo: ele nasceu para ser um herói, afinal (8. A apoteose)! Ele pode, após tantos suplícios, retornar para Ítaca (9. A passagem pelo limiar de retorno) e, vingando-se dos folgazões que assediaram sua garota, viver em plena alegria e gozo (10. Liberdade para viver). 

Quando voltamos esse método de percepção do Campbell (que, verdade seja dita, está bem próximo ao que o estruturalista russo Vladimir Propp percebeu em suas “31 funções” do conto maravilhoso) ao mundo dos quadrinhos, notamos que boa parte dos heróis modernos bebe desta mesma fonte mítico-sistêmica, variando a formulação das categorias ou funções: ele é o sobrevivente de um planeta distante que foi destruído! Ele veio para a Terra e foi criado no campo, longe da poluição e da corrupção das metrópoles! Em sua jornada, ele descobre que possui uma força avassaladora e aprende a voar! Ele supera vilões que o temem e odeiam! Conhece pessoas que se tornam importantes aliados! Ele acaba salvando o mundo de perigos terríveis e da própria destruição! E seu nome é... Goku, do mangá Dragon Ball (e Dragon Ball Z), de Akira Toriyama. Até eu pensei que iria digitar “Superman”... 

Pois é, caro leitor, quando pensamos nesta estrutura de elementos ou funções míticas, acabamos objetivando ao invés de subjetivar o personagem. Assim como Goku e Superman, podemos usar o exemplo de Batman e Demolidor (ele é uma criança que teve o(s) pai(s) assassinado(s) por criminosos e, por meio de um treinamento duro, jurou defender a justiça atrás de um uniforme que instigasse medo aos criminosos), com a diferença de um ponto ou outro (o Demo sofreu um acidente com substâncias tóxicas e ficou cego, mas com todos os outros sentidos superdesenvolvidos, enquanto o Batman... bom, ele tem o Alfred e é bilionário...). Ah, tem um paralelo legal: ele é um soldado que jurou defender seu país! Uma experiência científica única lhe dá superpoderes e ele passa a defender o american way of life!!! Capitão América ou Capitão Átomo? Tanto faz, os dois militares integram supergrupos representativos (Vingadores e Liga da Justiça da América) e sofrem para se reintegrarem ao mundo contemporâneo.

O caso aqui parece ser a relação de estruturas de formação desses personagens, um conjunto de elementos que espelham mais que uma ideologia cultural e que acabam percorrendo a profundidade de camadas muito próximas aos arquétipos. Será que é mera coincidência o Batman, o herói sombrio mais representativo de nossos dias, se ocultar em uma caverna? Não se pode ver aí certo elemento ctônico, algo meio “profundezas”, como no mito de Hades? As questões do personagem causar medo em seus adversários e ser “praticamente uma sombra na noite de Gothan” talvez sejam indicações dessa eventual natureza arquetípica do Sr. Wayne. É interessante que a construção de Batman peça isso e, mais, todas as vezes que esses elementos foram ignorados, geraram produtos meio questionáveis, como no caso do Batman dos anos 60 e séries animadas como Batman: the brave and the bold, ou o Batman que aparecia na série de 70/80 “Super Amigos”. Faça uma experiência, dileto leitor, e pense no Batman que assistíamos no SBT: havia o Batman “live action” dos anos 60 e aquele Batman do desenho animado da Warner Bros., com um estilo mais sombrio. Qual é o Batman que mais representa o ideal do personagem? 

O que quero dizer, nessa primeira parte do texto, é que existem, sim, elementos míticos e objetivos na raiz formadora dos personagens de quadrinhos e que essa noção é parte integrante de uma mídia de massa como é o caso dos quadrinhos (assim como a televisão ou o cinema). A grande questão é por que, então, todo gibi de herói não é um sucesso ou um fracasso? Se todos são baseados em elementos arquetípicos e, em certo grau, são identificados e identificáveis (consciente ou inconscientemente) por todos os leitores, por que todo herói não é um sucesso como Superman,  Batman, Homem-Aranha ou Homem de Ferro? Onde está a diferença que mantém revistas no topo das mais vendidas e, inclusive, concede a pecha de “clássico” aos personagens e histórias ali tratadas, como The Spirit, de Will Eisner, ou O cavaleiro das Trevas, de Frank Miller? A fórmula está ali, mas, então, nos questionamos: por que os resultados variam tanto? Se “fazer heróis” é um processo objetivo, por que a repetição do mesmo não gera os mesmos resultados?  

 

Não perca semana que vem: A fórmula do herói - parte 2: A jornada de identidade

 

 

Dangelo Müller              

Ms.Letras e cultura Regional

 

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